domingo, 10 de agosto de 2008

Como se constrói um problema

No acompanhamento de algumas sessões ordinárias da Câmara Municipal de Setúbal, fiquei mais esclarecido da forma de funcionamento deste órgão autárquico.
As sessões que se realizam maioritariamente na 1ª e 3ª quarta-feira de cada mês e composta por três momentos distintos:

  • Período de antes da ordem do dia (geralmente com um debate bem animado)
  • Período da ordem do dia (por vezes um pouco monótono para quem assiste às sessões dependendo da existência ou não de propostas envoltas em alguma polémica)
  • Período destinado à intervenção do Público (geralmente um momento interessante de participação cívica da população, onde tentam obter uma melhor atenção com vista à resolução de problemas que os afectam directamente)
Depois de ter deixado de assistir às sessões no inicio de Março último, passei a ler a 1ª e 3ª parte das actas e a dar uma vista de olhos à 2ª parte. pois a maior parte das propostas não tem o menor significado para mim.
Contudo, quando uma proposta ocupa várias paginas (4) de uma acta, é sinal que está envolta em polémica, foi certamente um ponto alto dessa sessão, e por isso merece uma leitura mais atenta.
Foi o que eu fiz, não porque tivesse interesses no local ou conhecesse alguém envolvido, mas porque será um bom exemplo de como confiando cegamente num futuro certamente incerto, poderão estar sim, a construir um problema de desfecho imprevisível.

A proposta tem a seguinte referencia:

12. Deliberação n.º210/08 – Proposta n.º 110/2008 – DURB/DIGU – Aprovação de projecto de arquitectura – NOBILIS – Empreendimentos Imobiliários, Lda. – Av. Alexandre Herculano e Guiné Bissau – Freguesia de Santa Maria da Graça (acta 07-2008, paginas 21 a 25).
Vou só somente retirar as frases (sem as comentar) que para mim são elucidativas do ambiente e argumentos que se esgrimem entre os dois lados da barricada.
Já aqui o disse e reafirmo, que é uma experiência enriquecedora para quem pode, para alem de ser um acto de cidadania, assistir a uma sessão da sua Câmara Municipal ou mesmo da Junta de Freguesia.
Para os mais interessados poderão depois ler a totalidade da deliberação no link da Câmara Municipal de Setúbal ou no link da Fonte do Lavra (não vá a acta estar indisponível).

Sr. Vereador Paulo Valdez
– Tinha várias questões a colocar. A primeira era, porque razão é que estando em curso a elaboração de dois planos de pormenor, o da Avenida Alexandre Herculano que estava em curso desde a deliberação de Câmara de 5 de Março de 2003, e também naturalmente o plano de pormenor que não se sabia se estaria em curso, mas deveria estar, em breve referente ao Estádio do Bonfim, que seria mesmo em frente a esta zona. Estando em curso este dois planos de pormenor, porque razão não se aguardava pela respectiva conclusão, de forma a ficarem salvaguardadas as soluções de conjunto, compatibilizando os edifícios que compunham as diferentes unidades urbanas e adequando os espaços públicos necessários às renovações destas áreas. A segunda questão era que, mais do que a qualidade arquitectónica do edifício, tal como era dito na proposta, importava, importava a qualidade do espaço urbano no seu conjunto. No caso em apreço, como se justificava essa qualidade com um edifício de oito pisos, numa unidade urbana em que todos os restantes edifícios só atingem quatro pisos, no máximo, tendo como referencia a cércea dos edifícios mais elevados, situados na Avenida Guiné-Bissau, tratava-se de um exercício que não tinha em conta a interrupção assumida no PDM, entre os aqueles edifícios e os que se situavam no troço da Avenida Alexandre Herculano, onde se situava o prédio em apreço, nomeadamente com a constituição de uma futura zona verde pública, no espaço actualmente ocupado pelo logradouro do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, na Quinta da Casa de Santana. A terceira questão era de que tratando-se no total de 25 unidades/fracções, porque razão não era aplicável o disposto na alínea b) do art.º 8.º do Regulamento de Urbanizações e Edificações do Município de Setúbal, pois havia impacto semelhante ao loteamento, bem como o disposto no n.º 1, do art.º 9.º do mesmo regulamento, espaço que o rodeia. (...) Era admissível autorizar um edifício, em que uma das fachadas com fenestração distava pouco mais de um metro da extrema de um prédio particular e criando sobre ele uma pesada servidão de vistas, antes de o mesmo ser adquirido pelo Município para uma finalidade pública, como estava prevista no PDM. (...)
tinham surgido dúvidas, porque se tratava da zona que ligava a Avenida Alexandre Herculano junto à Praça Vitória Futebol Clube, para a Avenida da Republica da Guiné-Bissau , onde estava uma série de casas de rés-do-chão, logo a seguir, começando perto do edifício onde se situava o Frango vaidoso e antes era o Retiro Vitoriano. Tratava-se de uma zona de casas baixas, onde ia haver quatro pisos no lado da avenida Alexandre Herculano e de repente, passava-se para oito, naquela zona que estava voltada para a Capela do Bonfim, o Estádio do Vitória e a Praça Vitória Futebol Clube, e depois diminuía-se levemente para seis pisos já na Avenida da República da Guiné-Bissau. (...) Perguntava como é que não havia impacto quando se ia fazer um prédio de oito andares em frente à Capela do Bonfim e ao actual Estádio do Vitória. Isso teria impacto. (...)

Sr. Vereador André Martins – As questões levantadas eram pertinentes e legitimas, porem, as soluções apresentadas decorriam da aplicação da legislação em vigor e as questões estéticas eram sempre discutíveis. Na Avenida Alexandre Herculano decorria um plano de pormenor que tinha uma pretensão de alinhamento de cérceas e tinha havido uma interpretação interior na Divisão de Planeamento diferente da que havia hoje, tal como se podia ver na proposta, onde havia um exemplo disso. (...) Havia o entendimento de que se respeitava as cérceas dominantes deste eixo urbano, numa área urbana consolidada, que não punha em causa os regulamentos municipais e o PDM, e daí que houvesse uma alteração da interpretação, e o edifício de oito pisos respeitava efectivamente o alinhamento no eixo urbano da Avenida Alexandre Herculano e a Avenida da República da Guiné-Bissau. A outra proposta era de quatro e seis pisos, e portanto, nem sequer estava em causa. Estas eram as razões pelas quais em vez de estarem a aguardar o desenvolvimento do plano de pormenor, poder-se-ia não ficar com os projectos pendurados e ajudar os investidores a apresentar soluções que se enquadrem na apreciação técnica e estética, sem por em causa os regulamentos em vigor. O que acontecera era que os serviços técnicos tinham proposto ao investidor que apresentasse, se estivesse interessado, já que a proposta inicial não tinha viabilidade, um projecto desta natureza, este estaria dentro dos regulamentos em vigor e teria viabilidade. (...)

Sr. Vereador Ilídio Ferreira – (...) Pensava que a proposta inicial do munícipe era para a construção de um edifício em duas fases, numa primeira era de quatro pisos, esperaria pela aprovação do plano de pormenor e depois então construiria os oito pisos, partido do principio de que o plano de pormenor seria aprovado nessa base e era a Câmara Municipal que lhe ia dizer que preferia que ele apresentasse já os projectos de quatro e oito pisos. (...) Em terceiro lugar, bem ou mal, tinha sido a Câmara Municipal a indicar que não devia ser apresentado um projecto de quatro, mas sim um de quatro e de oito pisos, para se requalificar a zona, pelo que agora não seria correcto dizer ao munícipe que isto voltaria para trás, depois deste gasto o dinheiro dos projectos. Embora as questões colocadas fossem pertinentes, havendo cumprimento da lei, e ainda pelos factores que indicara, a sua bancada viabilizaria a proposta.

Sr. Vereador Paulo Valdez – Em relação à lei ser cumprida, partiam sempre do principio que as propostas contemplavam isto, mas havia um prédio, numa rotunda, que tinha sido construído em cima de uma linha de água. Com certeza que o Sr. Vereador que trouxer isto ali, pensava que a lei estava a ser cumprida, senão seriam uns malfeitores. (...) Compreendia que entre uma instituição da Igreja e um empresário, o empresário teria maior capacidade de negociação do que a instituição, mas a verdade era que o edifício teria numa das fachadas as janelas, ou a fenestração, palavra que vinha do francês, fenetre, com uma distância de pouco mais de um metro de extrema de um prédio particular, que era propriedade da Quinta das Irmãs e nada tinha sido definido. Havia um conjunto de factores que não estavam devidamente esclarecidos pelo Sr. Vereador, mas compreendia que havia um aspecto muito importante, era um projecto que o promotor já tinha na Câmara Municipal há alguns anos e que a bancada da CDU prometera regularizar projectos que estavam a “marinar” na Câmara desde há muitos anos, que os “camaradas de partido” se tinham encarregado de fazer marinar, pois não se podiam esquecer que agora estavam a fazer de um prédio andares em oito e seis pisos, quando durante anos, o hotel no Parque José Afonso, por causa de um recuado, era recusado de forma imediata. Compreendia que se devia dar resposta aos promotores que deviam investir na cidade, mas continuava a ter enormes dúvidas na opção, nomeadamente porque havia janelas para um propriedade vizinha e o conjunto de quatro, oito e seis, e porque não sabia o que ia ser construído na Avenida Alexandre Herculano, de acordo com o plano de pormenor, a sul do edifício de quatro andares.(...) Tinham algumas preocupações nesta solução, até ao nível do planeamento, mas a bancada da CDU é que era a responsável pelo planeamento urbanístico da cidade, enquanto estivesse no poder.

Sr. Vereador André Martins – (...) Relativamente à questão de ser uma distância de um metro, podiam considerar que ficava muito perto da propriedade privada, mas esta propriedade não tinha possibilidade de edificação, ficando as janelas viradas para um terreno que iria ser para uso de lazer. (...)

Sra. Presidente – Disse que os planos de pormenor, nomeadamente, eram demorados, e que este, tal como outros, eram processos que já tinha passado muitos anos que estavam para ser resolvidos, muitos deles vinham de mandatos anteriores, e atendendo-se às características legais que ali estavam indicadas, nem este, nem nenhum prédio viria ali, que não respeitasse a legalidade. Por vezes, podia haver algumas dúvidas, mas não sobre a legalidade, e por isso, apelava-se ao sentido de ajuda dos Srs. Vereadores para o desenvolvimento de Setúbal. Este processo estiver arrastado no tempo, mas também era verdade que os planos de pormenor demoravam tempo a serem feitos, e o promotor já pagara demasiados juros à banca pelo tempo que demoraram os projectos.

Não havendo mais discussão sobre a proposta, a Sra. Presidente submeteu a mesma a votação, sendo aprovada por maioria e em minuta, com quatro votos a favor dos Srs. Vereadores da CDU e cinco abstenções dos Srs. Vereadores do PSD e PS.

A tentação de fazer comentários próprios a este texto são enormes, mas vou conseguir resistir.
Informações complementares:
1. Intervenientes no debate:
  • Sr. Vereador Paulo Valdez pelo Partido Social Democrata
  • Sr. Vereador Ilídio Ferreira pelo Partido Socialista
  • Sr. Vereador André Martins pela Coligação Democrática Unitária (CDU – Partido Ecologista “Os Verdes”), Vice-Presidente da CMS e Vereador responsável pelo Urbanismo
  • Sra. Presidente da CMS Maria das Dores Meira pela Coligação Democrática Unitária (CDU – Partido Comunista Português)
2. Imagem de satélite (Google) do local.
3. Fotografia do local tirada por mim em 09-08-2008, junto à capela do Bonfim que representa a esquina oposta à localização deste projecto.

Leitura auxiliar recomendada - http://fontedolavra.blogspot.com/2008/07/as-regras-do-jogo.html

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